segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

As crianças afluentes, por Daniel Sampaio


Daniel SAMPAIO, As Crianças afluentes, Público. Pública, 05. 02. 2012,  57

As crianças afluentes são abundantes em tudo: falam muito, exigem demasiado, manifestam os seus pontos de vista com excessiva exuberância. Há muito deixaram de se preocupar com os outros e permanecem centradas em si mesmas. O seu quotidiano é preenchido por movimentos constantes de birras, protestos ou tentativas de sedução, conforme as circunstâncias do momento. 0 seu discurso é caudaloso, quer em casa quer na escola, como se não pudessem existir, um só momento, fora do trono que ocupam. Durante alguns minutos por dia, são capazes de ficar em silêncio, curvadas sobre si própria: nessa altura, pais e professores suspiram de alívio, mas é apenas o descanso do guerreiro. De repente tudo volta ao ponto de partida e a profusão regressa, como se aquelas tréguas só pudessem ser de curta duração.
Observemos o seu quotidiano. Imaginemos uma  dessas crianças: rapaz, onze anos, 6.o ano de escolaridade, um irmão mais novo. Quando é acordado pela mãe para ir para a escola, logo começa a protestar, porque é cedo e está  frio. Em regra não toma o pequeno-almoço, toda a família já se atrasou com o protesto inicial e o menino agora embirra com o leite matinal. Chega à escola e não fala às auxiliares, mas não hesita em gozar um colega mais frágil ou em desafiar a professora, sobretudo se não for logo gratificado com uma atenção privilegiada. A afronta pode ser uma  recusa de resposta, olhos para baixo e braços cruzados com força, ou aparecer sob forma disfarçada, através de uma série interminável de perguntas, para as quais há  muito conhece as soluções. Nos testes, olha para o colega do lado para espreitar as respostas, estuda pouco mas quanto baste para não reprovar.
Chega o primeiro intervalo. Irritado e cheio de fome, abranda a sua fúria numa bola de Berlim com creme, ou num donut ressequido do bar da escola. Não dispensa uma  piada a quem o receia e é hábil nas graças às raparigas. De regresso às aulas, é o momento de armar em líder da turma e protestar quando a professora tenta impor a disciplina.
Almoça longe do refeitório, isso é para os chungas. Prefere comer no café mais próximo, a exigência diária de dinheiro aos pais permite-lhe escolher a ementa. De tarde, está sonolento nas aulas, olha com ar de desafio em seu redor, não toma nota dos trabalhos para casa.
Vai ao judo com a mãe, que aparece a correr deixando o trabalho a meio. Aplica-se pouco, a sua cabeça já está  no centro comercial onde a seguir vai exigir T-shirt e polo de marca, ténis à moda ou mais um jogo para a PlayStation. No carro de regresso a casa, protesta uma vez mais:  a T-shirt é de uma cor que não aprecia, faltou comprar mais um par de calças.
Os trabalhos de casa são feitos a correr, em alternativa exige à mãe uma justificação para a professora se não os faz. Ignora a chegada do pai, pois desde há  muito está no Facebook ou a lançar tiros em jogos de computador. Janta em tabuleiro uma fatia de pizza, de volta aos jogos não aceita ir para a cama a hora supostamente combinada. No quarto tem televisão, computador e a amiga PlayStation, quanto mais tarde fechar a luz, mais vencedor se sentirá.
No dia seguinte, tudo recomeça: uma série caudalosa de exigência, raiva descontrolada e retaliação para quem ouse opor-se. Os pais, desesperados, consultam um psicólogo que o ouve com atenção mas que, muitas vezes, lhe reforça a omnipotência.
Estas crianças esquecem que a sociedade já não é afluente. O cibercapital inundou todos numa torrente de escassez financeira e penúria emocional. Aos meninos afluentes tudo foi dado ou prometido, porque pais e avós deixaram que fossem os mais novos a mandar na família, em vez de ser a família a organizar o quotidiano dessas crianças.

Psiquiatra d.sampaio@netcabo.pt