Daniel SAMPAIO, As Crianças afluentes, Público. Pública,
05. 02. 2012, 57
As
crianças afluentes são abundantes em tudo: falam muito, exigem demasiado,
manifestam os seus pontos de vista com excessiva exuberância. Há muito
deixaram de se preocupar com os outros e permanecem centradas em si mesmas.
O seu quotidiano é preenchido por movimentos constantes de birras, protestos
ou tentativas de sedução, conforme as circunstâncias do momento. 0 seu
discurso é caudaloso, quer em casa quer na escola, como se não pudessem
existir, um só momento, fora do trono que ocupam. Durante alguns minutos
por dia, são capazes de ficar em silêncio, curvadas sobre si própria: nessa
altura, pais e professores suspiram de alívio, mas é apenas o descanso
do guerreiro. De repente tudo volta ao ponto de partida e a profusão regressa,
como se aquelas tréguas só pudessem ser de curta duração.
Observemos o seu quotidiano. Imaginemos uma dessas crianças: rapaz, onze anos, 6.o ano de
escolaridade, um irmão mais novo. Quando é acordado pela mãe para ir para a
escola, logo começa a protestar, porque é cedo e está frio. Em regra não toma o pequeno-almoço, toda
a família já se atrasou com o protesto inicial e o menino agora embirra com o leite
matinal. Chega à escola e não fala às auxiliares, mas não hesita em
gozar um colega mais frágil ou em desafiar a professora, sobretudo
se não for logo gratificado com uma atenção privilegiada. A afronta pode
ser uma recusa de resposta, olhos para
baixo e braços cruzados com força, ou aparecer sob forma disfarçada, através de
uma série interminável de perguntas, para as quais há muito conhece as soluções. Nos testes, olha
para o colega do lado para espreitar as respostas, estuda pouco mas quanto
baste para não reprovar.
Chega
o primeiro intervalo. Irritado e cheio de fome, abranda a sua fúria numa bola
de Berlim com creme, ou num donut
ressequido do bar da escola. Não dispensa uma
piada a quem o receia e é hábil nas graças às raparigas. De regresso às
aulas, é o momento de armar em líder da turma e protestar quando a professora
tenta impor a disciplina.
Almoça
longe do refeitório, isso é para os chungas. Prefere comer no café mais
próximo, a exigência diária de dinheiro aos pais permite-lhe escolher a ementa.
De tarde, está sonolento nas aulas, olha com ar de desafio
em seu redor, não toma nota dos trabalhos para casa.
Vai
ao judo com a mãe, que aparece a correr deixando o trabalho a meio. Aplica-se
pouco, a sua cabeça já está no centro
comercial onde a seguir vai exigir T-shirt
e polo de marca, ténis à moda ou mais um jogo para a PlayStation. No carro de
regresso a casa, protesta uma vez mais: a T-shirt
é de uma cor que não aprecia, faltou comprar mais um par de calças.
Os
trabalhos de casa são feitos a correr, em alternativa exige à mãe uma justificação
para a professora se não os faz. Ignora a chegada do pai, pois desde há muito está no Facebook ou a lançar tiros em jogos
de computador. Janta em tabuleiro uma fatia de pizza, de volta aos jogos não aceita ir para a cama a hora
supostamente combinada. No quarto tem televisão, computador e a amiga
PlayStation, quanto mais tarde fechar a luz, mais vencedor se sentirá.
No
dia seguinte, tudo recomeça: uma série caudalosa de exigência, raiva
descontrolada e retaliação para quem ouse opor-se.
Os pais, desesperados, consultam um psicólogo que o ouve com atenção mas que, muitas
vezes, lhe reforça a omnipotência.
Estas
crianças esquecem que a sociedade já não é afluente. O cibercapital inundou todos numa torrente de
escassez financeira e penúria emocional. Aos meninos afluentes tudo foi dado ou
prometido, porque pais e avós deixaram que fossem os mais novos a mandar na
família, em vez de ser a família a organizar o quotidiano dessas crianças.
Psiquiatra d.sampaio@netcabo.pt